segunda-feira, 21 de novembro de 2016

A faixa do Cuca

Por Diego Iwata Lima

Pelo fosso, chego à ferradura, passo pelo túnel, subo alguns degraus, na direção do placar e me sento. O garoto está meia dúzia de lances abaixo, mais para direita, mais perto do começo da curva. Veste uma camisa do modelo novo, com as listras em um verde mais claro e o patrocínio da Parmalat. Um boné verde fosforescente de tactel e uma japona preta de nylon, alguns números maior, completam o look.

Há pouco mais de 8 mil pessoas no estádio. Seu pai, cabelo e bigodes sem um fio branco, ouve o jogo em um radinho preto, Motoradio, modelo Dunga II, colado à orelha. Os amigos do pai, espalhados pela arquibancada. E ele ali, atento. Com 11 anos completados havia pouco, já não quer comer tudo que passam vendendo, tampouco se distrai do jogo. Olha só para o campo, com atenção.

Faz só 24 anos, mas o jogo é muito diferente. A bola parece ser maior, as ações são mais lentas. Realmente, o Parque Antarctica era escuro pra cacete. Dessa distância, nessa penumbra, só mesmo um olho treinado como o dele distingue com facilidade quem é quem no ataque “mullet” Cuca, Evair, Jean Carlo e Maurílio. O mesmo mullet que o menino ostenta, não por acaso.

Eu não me lembrava de que o gol acontecia tão cedo. Aos 10 min do 1º tempo, o destro lateral-esquerdo Dida, em frente das numeradas descobertas, cruza rasante no primeiro pau do gol do placar, bem na nossa frente. A bola passa por Evair e cai na pequena área. O beque do Ituano dá um balão pro alto, Evair disputa com o goleiro Márcio e a bola sobra para Cuca, num chute meio golpe de caratê, fazer 1 a 0 de pé direito.

Confesso que o tive de pesquisar o gol no Youtube. Mas, da comemoração, jamais me esqueci. Ato contínuo ao chute, Cuca pula a placa de publicidade, contorna o escudo do clube que havia atrás do gol, pula uma segunda fileira de placas brancas com o logo e o lettering da Parmalat em azul, vai até o limite do jardim suspenso e faz o gesto que arranca daquele menino suas primeiras lágrimas de alegria por causa do Palmeiras.



Cuca corre a mão direita em frente ao peito, do ombro esquerdo para o quadril oposto, duas vezes, simulando vestir uma faixa de campeão. Pela primeira vez, o menino vislumbra um gosto que nunca provara. E sente que tudo que quer na vida é ser campeão, nada mais. Só quer que o gesto do Cuca se torne real. Só quer vestir a faixa.  

As lágrimas saem natural e inevitavelmente. O garoto chora e nem sabe como, por quê. Vejo-o, gordinho, com as pernas curtas, descer os degraus correndo para chegar mais perto do camisa 11, que bate palma e aponta para a torcida. O menino pula, grita e bate no peito. Sente vergonha de o pai perceber que ele chorara com o gol. Mas chora ainda mais. E, naquele momento, se dá conta de que o Palmeiras era para ele algo ainda maior do que ele supunha já há uns três, quatro anos, quando começara a se apaixonar.

Edinho Baiano faz o segundo. O Palmeiras vence por 2 a 0. O jogo acaba, o hino sobe, e observo que o garoto, o pai e os amigos descem ao fosso para “fazer o pêndulo”, o tradicional caminhar sem se mover do velho Palestra Italia, no caminho para a saída. E os sigo. O pai ouve o radinho ao lado dele, e fico emparelhado com os dois.

- E aí, será que o Palmeiras vai ser campeão?”-, pergunto ao menino que, desde aquela época, já tinha facilidade para conversar com estranhos e dar sua opinião a todo momento.

- Vai! E vai ganhar do São Paulo na final! -, diz ele, com um sorriso que mal cabe na sua cara larga, de maxilar proeminente, mestiço de japonês com piauiense, italiano e espanhol. O mesmo sorriso que mal cabe na minha cara larga de quase quarentão, mestiço de japonês com piauiense, italiano e espanhol, com o maxilar proeminente disfarçado pela barba.  

- O Cuca vai vestir essa faixa! – digo a ele, omitindo que isso levará quase um quarto de século. Que, antes disso, palmeirenses como ele viverão tempos maravilhosos e sofridos naquele estádio. Anos de ouro e de lata. De Brasileiros, Paulistas, Copas do Brasil, Segundonas, Mercosul e Libertadores. Que até mesmo aquela casa que ele tanto ama irá quase totalmente ao chão antes de a profecia do Cuca se realizar.

O pai olha pra mim e sorrimos cúmplices. Mentalmente, digo a ele, “Obrigado, pai”. 

Num estalo, estou de volta àquele mesmo endereço, 24 anos depois. Faz pouco que acabou Palmeiras e Chapecoense, em 27 de novembro de 2016. No gramado, Cuca veste a faixa imaginária, cujo valor, ao menos para aquele moleque de 11 anos, será sempre maior do que o de qualquer faixa de verdade, e encerra, enfim, aquela noite que começara em 30 de setembro de 1992.

Então, percebo que estou sendo observado. Olho para a direita e vejo ao meu lado, uns degraus para baixo, o moleque de 11 anos. Ele se aproxima, segura a minha mão, olha nos meus olhos e sorri, sem dizer nada. Agora, é ele que me vê derrubar as mesmas lágrimas inevitáveis e incontidas de mais de duas décadas antes. Dessa vez, não há qualquer vergonha. O que persiste é apenas um feliz espanto com a importância que aquilo tudo tem para mim. Para nós, afinal. 






3 comentários:

  1. Belíssimo texto, você está fazendo falta na Folha. Viva o Palmeiras

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  2. Daquela vez que subindo a esteira de carros para ir ao estacionamento superior do West Plaza, vocè olhou para o Palestra e disse: nossa, como deve ser bom ser campeão. Faz tempo.. e calou seu pai e a mim.

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