Nas últimas semanas, a minissérie "Making a Murderer", de Moira Demos e Laura Ricciardi, e o filme "Que horas ela volta?", da diretora Anna Muylaert, tomaram as telas e os imaginários dos brasileiros.
Foi mais ou menos o tempo de boa parte dos espectadores conseguir chegar ao final das mais de dez horas de filmagem documental da série lançada pelo Netflix em 21 de dezembro. Já o filme foi exibido na Tela Quente da Globo, na segunda-feira (11), o que fez crescer muito o número de espectadores da obra, que já havia sido superior a 300 mil nas salas de cinema.
Foi pensando na história de Steven Avery, personagem central de "Making a Muderer", que assisti na TV ao filme estrelado com excelência por Regina Casé. Somada, também estava na minha cabeça a densa leitura da HQ "Maus", de Art Spiegelman, sobre o Holocausto, premiada com o Pullitzer em 1992, que eu terminara de ler no início de janeiro.
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Mugshot de Steven Avery, 'protagonista' da série "Making a Murderer" |
Talvez por isso, foi impossível não fazer seguidas conexões entre a trama real ambientada no estado norte-americano de Wisconsin, o enredo ficcional proposto por Muylaert em um cenário paulistano, e a história dos judeus poloneses trucidados por Hitler na Segunda Guerra Mundial. Afinal, as três obras tem a presunção de superioridade, de raça, classe social e financeira, como ponto central
A grande cena de "Que horas ela volta?", mostrada no trailer da obra e na chamada comercial da Globo, é protagonizada por Jéssica (Camila Márdila). Deitada no chão do quartinho de empregada, após ser acusada pela mãe Val (Regina Casé) de se julgar melhor que os outros, a garota retruca: "Eu só não me acho pior, visse?", em referência aos donos da casa em cujos fundos a personagem de Casé mora e trabalha.
Essa cena me ligou diretamente a alguns trechos de "Making a Murderer". Como naquela em que uma escrivã diz que um crime que está sendo investigado parece ser coisa de Steven Avery. Ou quando um investigador escreve a um advogado que tudo deve ser feito para "eliminar o pool genético" da família Avery. Alguém pensou mais pensou na eugenia nazista?
Não pretendo aqui inocentar Avery, cuja conduta anterior aos crimes centrais na história do documentário, aliás, é deplorável. Muito menos equiparar a conduta dos patrões de Val, tão iguais às de tantos paulistanos que conheço, às dos policiais de Wisconsin ou ao comando nazista. Mas sim discutir e apontar o dedo ao fato de que nós, como sociedade, ainda sermos capazes de olhar para outro e rebaixá-lo, julgá-lo de uma classe inferior, por qualquer motivo. E assim tratá-lo.
No filme, Val aceita sua condição inferior perante os patrões como inata. Na série que, na verdade, é a vida real, forças públicas não se importam em manipular provas e circunstâncias para corroborar uma condenação que antes de ser justa, no sentido de Poder Judiciário, é prévia e moral. No Holocausto não há nem como se começar a descrever os preceitos hitleristas com qualquer embasamento lógico.
Apesar de suas qualidades artísticas, HQ, filme e série me deixaram com a mesma sensação amarga e as lágrimas ao final.
Vivemos tanto, evoluímos em tantos aspectos tecnológicos, e ainda conseguimos olhar na cara de outra pessoa e a julgarmos pior do que nós mesmos e nossos pares. Não se trata aqui de avaliação de capacidade. Há pessoas mais bondosas, inteligentes, habilidosas que outras. Refiro-me à avaliação que fazemos sobre a qualidade do outro no que diz respeito ao seu valor como gente.
Pior por ser pobre. Nordestino. Judeu. Doméstica. Iletrado. Gay. Gordo. Mulher. Petista. Tucano. Diferente.
Se desanima pensar que ainda nos portamos assim, conforta ver que obras propondo discussões em tornos desse tema conseguem emergir da letargia intelectual/moral e chegar ao grande público. E que é com base nas qualidades de grandes artistas que essas questões ganham peso.
Ousadamente, me dou permissão para subverter a lapidar frase de Jean-Paul Sartre. Nós somos o inferno.
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