domingo, 1 de novembro de 2009

Filme: "Maradona" - A paixão de dios


Em dado momento do muito bom Maradona (2008), o ex-jogador olha para Emir Kusturica e afirma: eu sou um ator. Diego não se refere às filmagens de que participa sob a direção do bósnio. Tampouco faz essa declaração com gravidade, como se chegasse ali a uma descoberta, ou revelasse um grande segredo. Fala com a naturalidade de quem conhece bem o seu papel, de quem há muito tempo trabalha para dar conta de ser, na sua totalidade, tudo o que Diego Armando Maradona representa.

Aos 10 anos, Maradona já sabia que ia ser Campeão Mundial de Futebol. Olhos de menino, feições muito mais suaves que aquelas que veio a ter quando adulto, mas com o mesmo cabelo desgrenhado, Maradona revela seu destino para a câmera de um programa de TV que o vai procurar em Vila Fiorito, periferia de Buenos Aires. Resignado, sem soberba ou leviandade. E como se soubesse que aquela imagem um dia poderia ser usada em algum filme sobre sua vida, Diego, reveza declarações com embaixadas com a cabeça, com as costas, coxas, calcanhares, ombros e os dois pés.

Em 22 de junho de 1986, sob um sol intenso na Cidade do México, aos seis do segundo tempo, Maradona salta em uma disputa com o goleiro inglês. Mas, como não alcança a bola com a cabeça, o argentino levanta o braço esquerdo, semi-flexionado e, com a mão, empurra a bola para o gol. O juiz valida a jogada: Argentina 1 a 0. Três minutos depois, Maradona recebe novamente, ainda no seu campo defensivo. Tocando a bola sempre com la zurda, Diego arranca em alta velocidade. No caminho, dribla cinco, inclusive o goleiro, e toca para o gol vazio, decretando Argentina 2, Inglaterra 0, e, na sua lógica, como declara a Kusturica, vingando as mortes alvi-celestes da Guerra das Malvinas.

O fato de seus dois gols mais famosos, La mano de Dios (representando a malandragem e a amoralidade) e El gol del siglo (o cúmulo da habilidade futebolística), terem acontecido no mesmo dia é apenas mais uma amostra de que Maradona não está no planeta a passeio. A partida de 22 de junho de 1986, pelas quartas de final da Copa do Mundo, não seria uma síntese melhor acabada da tragédia Maradoniana se tivesse sido escrita por William Shakespeare ou Jorge Luís Borges.

Ao longo de pouco menos de duas horas, Kusturica conta esses e outros capítulos da história de Diego Maradona, sem a pretensão de esgotar o assunto, ou de realizar um testamento sobre quem foi o craque. Até porque, Maradona ainda é. Diferentemente do Pelé e do Édson, Diego é sempre a mesma persona, seja cheirando cocaína, apoiando Hugo Chávez, sendo perseguido, à lá Beatles, em Nápoles, ou reclamando do volume da televisão na casa dos pais, em uma tarde de domingo, durante um jogo qualquer.

Com uma direção segura e uma montagem bastante acertada, Kusturica vai construindo seu Maradona peça por peça, intercalando entrevistas próprias e imagens de arquivo. Os gols, exceto pelo gol do século, que vai revelando em pedaços ao longo do filme, acompanhado de uma dispensável animação, não são contextualizados ou catalogados. Lances de Diego por todas as equipes que defendeu são mostrados aleatoriamente, entrecortados por cenas domésticas, fãs nas porta de hospitais, encontros com Fidel Castro e ritos da igreja Maradoniana - sim, existe. Levemente narcisista, mas com contexto, Kusturica também adiciona ao documentários cenas de seus outros filmes, quando compara as atitudes de seus personagens com as de Diego na vida real.

Contraditório, politicamente incorreto, milonguero e exagerado como só os argentinos conseguem ser, Maradona, como os grandes heróis da ficção, tem uma música-tema, composta pelo cordobês cantor de cúmbia Rodrigo, morto em um misterioso acidente automobilístico no ano 2000. E Diego a canta no filme, em um palco acanhado, esquecendo a letra, suando e passando para a primeira pessoa os versos da canção composta para ser cantada por outrem. Entre eles, aqueles que dizem que 'fue deseo de Dios crecer e sobrevivir'.

Para seus fãs, especialmente os argentinos, Diego erra e acerta por determinismo, por ser o escolhido, por 'cargar una cruz en los ombros'. E essa posição, que Maradona não tem nenhuma vergonha em assumir, à luz de todos acontecimentos da vida do craque, está se tornando cada vez mais difícil de se contestar. Porque para cada tropeço, Maradona encontra uma nova maneira brilhante de, na mesma medida, se reerguer e 'ganar a cada paso, la vida', tornado-se cada vez mais deus aos olhos de quem o idolatra. Um deus à moda grega, ou romana, cheio de vícios e vontades, longe da perfeição, e por isso mesmo, tão sedutor, como atesta o apaixonado Kusturica.

Tietando o craque de maneira explícita e até ingênua, mas sem deixar de comentar suas quedas, Kusturica, que aparece tocando guitarra em mais de uma cena, dirige um filme descontraído, de um fã que se diverte com seu ídolo. Como, por exemplo, quando leva Diego para Belgrado, com o pretexto de relembrar o gol que ele fez pelo Barcelona contra o Estrela Vermelha, na Recopa Européia de 1982. Ali, fica claro que o que o diretor está fazendo, na verdade, é nada mais do que realizar o sonho de todo menino: passar uma tarde brincando com seu herói. Tanto melhor se essa brincadeira puder se tornar um filme. Tanto melhor se esse filme for tão bom quanto Maradona.

3 comentários:

  1. Não assisti, mas já gostei.
    O futebol carece de películas para contar sua história, um pouco porque a indústria do entretenimento é dominada por um País que não leva o futebol a sério, um pouco porque o futebol é mesmo muito menos coreografável do que outros esportes e, portanto, mais difícil de ser filmado. E não, não dá pra considerar peças publicitárias como "A Batalha dos Aflitos", "Fiel" e congêneres como cinema. São documentários feito por torcedores para torcedores.
    Quanto a Maradona, acho que a coluna toca num ponto chave para entender o personagem. Desde esse emblemático jogo contra a Inglaterra, ele não é visto por seus compatriotas como um ídolo esportivo. É visto como herói de guerra, uma figura mítica que resgatou o orgulho da pátria tão abalado pela Guerra das Malvinas - a qual já havia sido em si um golpe desesperado da ditadura argentina para resgatar o orgulho nacional, abalado com as crises econômicas.
    Isso o coloca noutro patamar, para além do bem e do mal, e ajuda a entender porque a Maradona, para los hermanos, tudo é permitido.

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  2. ... exceto pôr em risco a classificação para a Copa, ao que parece.

    Parabéns ao autor do blog, que assim como o velho Emil deixa transparecer sua admiração pelo Pibe D'oro ao longo do texto. Pena que é palmeirense, esse traste.

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